20 de dezembro de 2008

pra conversa do bar.



aventuras do ser
no nada
(quem tem náuseas de Sartre?)


_ Vim te matar.
_ A essa hora? Pra quê?
_ Soube que você está escrevendo matéria sobre Sartre.
_ É pecado?
_ Em Curitiba, só eu posso escrever sobre Sartre.
_ Com o perdão dessa arma apontada para mim, não sei o que vocês vêem nesse francês com cara de sapo, que acabou a vida mijando nas calças, num pileque contínuo.
_ Vê lá como fala.
_ Falo como Sartre falaria, diante de uma arma. Como você acha que ele falou, quando a Gestapo o prendeu, na Resistência?
_ Esse não me interessa.
_ Ah! Você prefere o Sartre das palavras.
_ Fora das palavras, não há salvação.
_ Abaixe essa arma, pare de bobagem, sente e vamos conversar sobre.
_ Está bem. Mas um gesto, e eu transformo seu para-si em em-si.
_ Enquanto você elucubra aí, não se incomoda se eu terminasse de ler isso aqui?
_ Sobre o que é?
_ Adivinhe?
_ Ah, sei.
_ Que é que você acha disso: “Sartre é o último filósofo grego. Depois dele, só são possíveis MacLuhans”.
_ Não acho nada.
_ “Teórico e ficcionista, antes de tudo, teve pela ação e pela militância um amor não correspondido: todas as suas agitações políticas, em termo de ação, sobre a sociedade francesa, foram menos que um fracasso. Foram apenas o nada”.
_ Continue.
_ “Contra o existencialismo, Sartre cometeu o crime supremo. Escreveu O ser e o nada, vasto tratado, suma teológica de uma doutrina filosófica que exalta a experiência individual, anti-teórica e contrária a toda e qualquer suma teológica. Cedo, Jean Paul percebeu que a forma perfeita para a exposição de suas teorias já existia. Não era o discurso conceitual de seus mestres, o teutônico delírio conceitual de O Ser e o Tempo, de seu mestre germânico Heidegger, o estilo de jogo de Kant e de Hegel. O existencialismo, por sua própria natureza, só poderia ser exposto através da ficção. Do conto. Da novela. Do romance. Com Sartre, a ficção transformou-se no gênero literário (textual) do existencialismo, veículo ideal de seus princípios”.
_ Prossiga. Ainda lhe concedo uma página.
_ “Difícil dizer, em Sartre, se é o filósofo que abastece o escritor ou o escritor que abastece o filósofo. De qualquer forma, o autor de A Náusea deu á literatura o status e a dignidade da filosofia. E, naturalmente, à filosofia, a cor e o movimento da literatura. Criou conceitos que se tornaram, em nossa época, moeda comum. A expressão “engajamento” foi ele que criou. “Autenticidade”. “Angústia”. “Má consciência”. “Escolha”. E teve dois amores: Simone de Beauvoir e o marxismo...”
_ Pare aí, senão...
_ Deixe eu pular para: “A invasão da Hungria pela União Soviética, para sufocar um movimento popular e nacional, fez com que Sartre rompesse seu alinhamento com a URSS stanilista. Como teórico, aliás, não deve ter sido fácil a tarefa das “caves” post-guerra, cheias de pré-beatniks, camisas de gola enrolada, barbas por fazer, jazz e álcool na cuca. Seus filhos, depois seriam, nos Estados Unidos, “beatniks”. E seus netos, os hippies”. O existencialismo é a metafísica do individualismo ocidental e capitalista”.
_ Pare, senão eu atiro.
_ Não atire. Eu me rendo, digo aqui que “O problema teórico de Sartre foi, sendo existencialista, isto é, seguidor de Kierkegaard, assumir um pensamento hegeliano, como o marxismo. Existencialismo e Hegel não combinam. Para Hegel e o marxismo, saído dele, o concreto é o geral: a classe social, o sindicato, o Estado. O particular e o individual não passam de abstrações. Para Kierkegaard de o Existencialismo é exatamente o oposto. O geral é abstrato. O individual é concreto. Sartre nunca conseguiu resolver essa contradição. Ainda bem. Ao que tudo indica, não tem solução”.
_ Fique aí onde está.
_ “O interessante em Sartre é que esse conflito filosófico de grandes proporções acaba sendo pai e mãe de sua ficção e seu teatro, única saída que achou para conciliar Hegel e Kierkegaard”.
_ Mais uma dessa não vou aturar.
_ “No fundo, o existencialismo de Sartre é a tradução da impotência política da intelectualidade francesa, no quadro histórico da França do pós-guerra”.
_ Não é o bastante.
Um tiro na noite é coisa que quem dorme nem nota.

paulo leminski – anseios crípticos 2

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